Para onde o homem vai quando se afasta de Deus
(Publicado no jornal Corriere della Sera no dia 12 de
outubro de 2001.)
Por Vittorio Messori
Visão ateísta de mundo
As religiões aprisionam a inteligência humana, enquanto o ateísmo é libertador…mas será que é isso mesmo?
As religiões aprisionam a inteligência humana, enquanto o ateísmo é libertador…mas será que é isso mesmo?
Desde o 11 de setembro uma profusão impressionante de matérias vem
inundando o noticiário dos jornais e dos canais de televisão. Entre os inúmeros
comentários, não faltaram aqueles dos ateus, que, satisfeitos, propuseram
novamente sua teoria:“Entenderam agora o que dissemos: viram a que levam
as religiões, todas elas, não apenas a islâmica?”
Foi particularmente virulenta a intervenção do Prêmio Nobel português,
José Saramago. Na conclusão de um artigo insultuoso, deixou bem claro o seu pensamento: “Não faltam ao espírito
humano inimigos, mas [o ‘fator Deus’] é um dos mais pertinazes e corrosivos”.
Na verdade, grande parte do raciocínio de Saramago baseia-se em um erro grotesco para um senhor agraciado com o mais prestigioso reconhecimento cultural da humanidade. Ele atribui erroneamente a célebre frase “Se Deus não existe, tudo é permitido” ao profeta da morte de Deus Nietzsche, ao invés de atribuí-la corretamente ao cristão convicto Dostoiévski. Só por isso, o discurso do Nobel lusitano já seria um pouco bizarro, uma vez que parte de uma citação equivocada.
Na verdade, grande parte do raciocínio de Saramago baseia-se em um erro grotesco para um senhor agraciado com o mais prestigioso reconhecimento cultural da humanidade. Ele atribui erroneamente a célebre frase “Se Deus não existe, tudo é permitido” ao profeta da morte de Deus Nietzsche, ao invés de atribuí-la corretamente ao cristão convicto Dostoiévski. Só por isso, o discurso do Nobel lusitano já seria um pouco bizarro, uma vez que parte de uma citação equivocada.
Trocando as bolas
Saramago confundiu Dostoiévski com Nietzsche em apologia ao ateísmo.
Saramago confundiu Dostoiévski com Nietzsche em apologia ao ateísmo.
Um infortúnio significativo. Mas seria crueldade, a pretexto de ajudar
um escritor octogenário, teimosamente marxista, aconselhá-lo a ter um melhor controle
de suas fontes e, então, ignorar completamente as críticas que fez, onde se
leem passagens como esta: “…as religiões, todas elas, sem exceção, nunca
serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e
continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de
monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais
tenebrosos capítulos da miserável história humana.” E por isso ele
propõe um “ateísmo libertador”.
Palavras duras. Mas, é preciso reconhecer, elas podem ter alguma razão.
Naturalmente, desde que fique claro desde o início que as “religiões” não são
todas iguais e que ainda há alguma diferença entre a liturgia de sangramento em
massa de jovens no altar-pirâmide dos astecas e a liturgia eucarística em um
altar católico; entre o ismaelita Hassan ibn Sabbah, líder da Ordem dos
Assassinos, e Francisco de Assis; entre Bin Laden e o Papa João Paulo II.
Lições da História. O que aconteceu com o mundo quando se tentou jogar, literalmente, no
lixo, todo o sentimento de religiosidade do coração dos homens?
Dito isso, convém se ater mais às lições da história do que às
digressões teóricas: o que aconteceu quando se tentou eliminar a “religião” da
sociedade e do coração dos homens? Será que realmente se abriu um reino de paz,
de mansidão, de fraternidade, de convivência pacífica e justa? Na verdade, e
falando apenas da Europa, nas duas principais ocasiões em que se tentou impor a
perspectiva ateísta, os fatos mostram que ocorreu justamente o contrário. Mas,
ainda hoje, muita gente propõe o ateísmo como remédio para todos os males.
Passaram-se 14 longos séculos, depois de Constantino, até que um Estado
inteiro, então um dos mais ricos e de maior prestígio em todo o Ocidente,
tivesse como objetivo o desaparecimento da fé em Jesus, o Cristo, o Messias.
Como demonstrado por Jean Dumont, o grande historiador que faleceu
recentemente, em seu livro implacável “Les prodiges du sacrilège”,
a campanha de descristianização conduzida pelo Terror, na Revolução Francesa,
não foi um episódio entre muitos, mas sim, a revelação da sua intenção mais
profunda e primária.
Ela visava, prioritariamente, acabar com o catolicismo, mas também com toda e qualquer religião “revelada” (assim como o culto católico, foram proibidos, sob pena de morte, também o culto protestante e o judaico) a fim de que o objeto do culto passasse a ser o homem, em nome da Razão. As contas desta tentativa foram feitas por um historiador norte-americano, Donald Greer: em apenas dois anos, entre 1792 e 1793, as vítimas da Revolução foram muito maiores do que a de toda a Inquisição em cinco séculos. As decapitações oriundas de julgamentos regulares foram quase 20 mil. Pelo menos o mesmo tanto foi assassinado sem julgamento, linchado, ou preso. Seria menos frustrante para quem pretende justificar esse frenesi de sangue, atribuí-lo a uma compreensível ira popular, há muito reprimida. Mas, na verdade, entre as 40 mil vítimas, 84% pertencia ao Terceiro Estado: à pequena burguesia, ao operariado e aos camponeses.
Ela visava, prioritariamente, acabar com o catolicismo, mas também com toda e qualquer religião “revelada” (assim como o culto católico, foram proibidos, sob pena de morte, também o culto protestante e o judaico) a fim de que o objeto do culto passasse a ser o homem, em nome da Razão. As contas desta tentativa foram feitas por um historiador norte-americano, Donald Greer: em apenas dois anos, entre 1792 e 1793, as vítimas da Revolução foram muito maiores do que a de toda a Inquisição em cinco séculos. As decapitações oriundas de julgamentos regulares foram quase 20 mil. Pelo menos o mesmo tanto foi assassinado sem julgamento, linchado, ou preso. Seria menos frustrante para quem pretende justificar esse frenesi de sangue, atribuí-lo a uma compreensível ira popular, há muito reprimida. Mas, na verdade, entre as 40 mil vítimas, 84% pertencia ao Terceiro Estado: à pequena burguesia, ao operariado e aos camponeses.
Barbárie revolucionária
Na região de Vendée, durante a Revolução Francesa, pessoas foram esfoladas e a maioria das casas destruídas. Moradores eram lançados em poços, como o do castelo de Clisson (foto).
Na região de Vendée, durante a Revolução Francesa, pessoas foram esfoladas e a maioria das casas destruídas. Moradores eram lançados em poços, como o do castelo de Clisson (foto).
Outro historiador, Reynald Secher, fez as contas trágicas da Vendée
(região da França marcada pela oposição histórica à Revolução Francesa), que se
insurgiu em nome da fé de seus pais: em um território de apenas 10 mil
quilômetros quadrados, 120 mil pessoas foram massacradas, 35% da população. Das
50 mil casas, 30 mil foram demolidas. As fontes foram envenenadas, plantações
cortadas. Tudo para eliminar qualquer possibilidade de recuperação dos
sobreviventes. E, também aqui, confirmaram-se, infelizmente, os horrores
habituais de todas as guerras: a ordem explícita dos jacobinos de Paris (que
eram ateus e não deístas, como alguns alardeiam) não era apenas para que se
ganhasse a batalha, mas para que se procedesse, a sangue frio, ao genocídio,
massacrando, antes que os demais, as mulheres fecundas para não gerarem outros
“malditos crentes de superstições religiosas”.
Com a pele dessas mulheres, mais macia, faziam-se luvas para os
oficiais, enquanto que com a pele dos homens tentou-se a fabricação de botas.
Ao ferver os cadáveres esfolados obteve-se gordura para as armas e sabão para o
exército. E, na ausência de câmaras de gás, todas as noites, durante meses,
procedeu-se a um plano sistemático de afogamentos: padres e seus paroquianos
sobreviventes eram trancafiados em caixotes e jogados no rio Loire.
Garoto-propaganda
O cientista Richard Dawkins no lançamento da campanha pelo ateísmo nos ônibus de Londres. Na frase em destaque: “Provavelmente Deus não existe. Então, pare de se preocupar e curta a sua vida.”
O cientista Richard Dawkins no lançamento da campanha pelo ateísmo nos ônibus de Londres. Na frase em destaque: “Provavelmente Deus não existe. Então, pare de se preocupar e curta a sua vida.”
Mas, por fim, um fruto ainda mais venenoso do que aquela primeira
tentativa (europeia, mas, pensando bem, mundial) de erradicar toda a
transcendência, foi sintetizada por Karl Barth, o teólogo protestante, por meio
da famosa constatação: “Quando o Céu está vazio de Deus, a terra fica povoada
de ídolos.” Um desses ídolos, o nacionalismo (desconhecido para a tradição
cristã) iria devastar o século XIX e terminaria com a explosão, em toda a sua
virulência, daquela que foi chamada de a Grande Guerra. Na verdade, apenas o
prólogo para outra.
Ativismo ateu
Em Nova York também foram utilizadas propagandas nos ônibus. Na frase em destaque: “Você não precisa acreditar em Deus para ser uma pessoa com moral ou ética.”
Em Nova York também foram utilizadas propagandas nos ônibus. Na frase em destaque: “Você não precisa acreditar em Deus para ser uma pessoa com moral ou ética.”
Em meio aos
ídolos ideológicos que se desenvolveram naquele vácuo religioso, se destacaria
o marxismo, que chega ao poder em 1917, incorporando, ampliando e, quando
possível, radicalizando a obra ateísta do jacobinismo francês. Na história,
nunca se viu uma tentativa tão sangrenta e sistemática como a que removeu os
traços retrógrados de qualquer “religião” dos salões do Museu do Ateísmo em
Leningrado [Nota do Tradutor: O Museu do Ateísmo ocupou a antiga Catedral de
Nossa Senhora de Kazan que hoje é novamente utilizada para o culto ortodoxo].
Os resultados estão aí diante dos olhos de todos, desde 1989, mas se corre o
risco de banalizá-los e achar normal, mais uma vez, a lembrança desse balanço
desastroso. Como já foi observado, essa tentativa de proclamar a morte de Deus
provocou a morte do homem, e não só a física, com a incrível marca das 100
milhões de vítimas. Mas também a morte moral, removendo das massas o gosto pelo
trabalho, o senso da dignidade, o respeito à ética, o estímulo para o futuro, a
prática da solidariedade. Para tomar apenas um exemplo: a “democrática” Albânia
foi o primeiro e único caso na história das nações que proclamou a
não-existência de Deus na Constituição. Em contraposição ao nosso, talvez
retórico mas inofensivo, “A Itália é uma República fundada sobre o
trabalho”, a Carta Magna albanesa tem em seu primeiro artigo: “A
Albânia é uma República fundada sobre o ateísmo”. Os calhambeques
enferrujados ao longo do Estreito de Otranto falam por si sós no que é que deu
todo aquele “fundamento”.
Repetimos: existem religiões e religiões; nem todos os conceitos de
divino são sempre aceitáveis. Há também uma religiosidade inquietante, existem
cresças obscuras. Não estamos entre os ecumenistas que facilmente abraçam toda
e qualquer Escritura Sagrada, todo e qualquer Deus. Na verdade, respondemos
apenas pela
nossa “religião”. Mas, a história fala claramente que as tentativas de
erradicar as religiões iniciadas em 1789 em Paris e em 1917 em São Petersburgo, levaram ao inverso do que ainda acreditam (ou
fingem acreditar) alguns apóstolos do ateísmo: ser a solução para os males do
homem.
Colaboração de Célia Regina
Colaboração de Célia Regina