sábado, 12 de abril de 2014

A HISTÓRIA DO AMOR



  
    O AMOR DA ERA CÓSMICA
          J. Herculano Pires no livro Pesquisa sobre o Amor, cap.  XI.
Na sequência conhecida das civilizações terrenas, que constitui a perspectiva histórica do nosso mundo, podemos propor um esquema da evolução do Amor. Segundo Toymbee, já tivemos pelo menos vinte grandes civilizações que pereceram, dando nascimento a outras. Somente a Civilização Cristã abrangeu a globalidade terrena e conseguiu projetar-se nas pesquisas cósmicas. Mas não sabemos se, com a devida certeza, antes de nós – abrange milênios e uma infinidade de culturas com incalculáveis e estranhas multidões – teriam existido civilizações que hoje são referidas em termos lendários. O que nos interessa, portanto, é o nosso mundo e a ideia que dele conseguimos formar através das pesquisas científicas de apenas seis séculos, a partir dos princípios do Renascimento no século XIV. Muito pouco, sem dúvida, mas é com isso que podemos contar.
 A perspectiva que essas pesquisas nos oferecem começa nas selvas e vem até aos nossos dias, mas abrange milênios. Pautando-nos por esse esquema geral, sem nos determos em minúcias e datas, pois o nosso escopo é uma visão e não um tratado, uma proposição aberta e não uma tese ou teoria formal, podemos distinguir as fases seguintes da evolução do Amor:
1 – Tempos Primitivos

Nessa fase encontramos o amor instintivo das populações selvagens, que apesar de sua brutalidade revelam tendências culturais e esforços contínuos para dominar o caos do mundo (selva, desertos, regiões geladas) e tentativas de organização social, de desenvolvimento artesanal, de aprimoramento das formas de moradia, meios de condução, instrumentos de trabalho, armas de guerra e caça, meios de comunicação e de relações com o mundo invisível, na solução possível do problema da morte. É a fase dos três elementos clássicos do desenvolvimento da cultura: o rito, a palavra e o instrumento.
Os desenhos das cavernas e as inscrições rupestres atestam essa evolução, que já nos colocam bem distantes das origens do homem, só acessível de maneira precária, através das escavações arqueológicas, com as descobertas de ossadas humanas e de animais. A lenda bíblica da Gênese não passa de lenda, por sinal típica dos tempos primitivos, oferecendo-nos uma forma de idealização superior de lendas mais antigas, cujo tipo ainda se produz nas tribos selvagens da atualidade. Imagina-se o amor primitivo como simples relação animal entre machos e fêmeas, das quais, pelo nascimento dos filhos, surgem os clãs, os primeiros agrupamentos familiais. E é nesses primeiros grupos que se define o amor como sentimento que brota do instinto sob controle da razão nascente. O desenvolvimento da razão pressupõe naturalmente a existência de condições inatas no homem, como queria Kant, mas o neokantismo atual, particularmente com René Hubert, substitui a teoria das categorias inatas da razão pela formação dessas categorias através da experiência. Do animal ao homem, a Natureza deu um salto qualitativo no aprimoramento do cérebro, criando as condições necessárias no córtex cerebral para o confronto dialético das experiências. Não obstante, como sustentam Hubert e Kerchensteiner, por trás desse processo de adaptação do órgão material a novas funções, temos de considerar a natureza espiritual do ser, no caso, o homem.
 A manifestação do amor, nessas possíveis condições, não revela a criação de um novo elemento ôntico, mas simplesmente a formação de condições orgânicas para que o elemento já existente no psiquismo se manifeste. Razão e afetividade se conjugam na experiência e o amor se manifesta arrancando o homem da animalidade. O fiat é uma alegoria do fazer humano, ligada à magia primitiva. Em todas as formas de magia, inclusive a teatral, até hoje, o poder da palavra é considerado importante. A relação das coisas e dos seres entre si inclui a relação da palavra com as coisas, os seres e o ato criador.
Esta breve incursão num campo de conhecimento especializado e altamente sofisticado não tem outra pretensão que a de oferecer ao leitor uma ideia, embora imperfeita, da gênese do amor humano.
 A primeira ilação que se pode tirar desse quadro mal esboçado, mas apoiado em teorias de especialistas consagrados, é a de que o amor arrancou o homem do plano dos instintos animais para o elevar à condição humana. E isso é suficiente para nos mostrar que o amor é o fundamento da civilização, a substância, por assim dizer, de que as civilizações se formam. A prova disso, a posteriori, está na função aglutinadora das sociedades humanas e orientadora da cultura que o amor sempre exerceu.
2 - Primeiras Civilizações

O nomadismo e a instabilidade das tribos e das hordas não permitia o desenvolvimento das civilizações.  Elas surgiram das primeiras acomodações sedentárias em regiões de fertilidade suficiente para reter os grupos humanos.  Assim, as primeiras civilizações do nosso esquema são agrárias a pastoris. O cultivo da terra e a criação de animais, geralmente nas proximidades e ao longo dos rios, proporcionam aos homens a possibilidade de produzir riqueza e desenvolvê-la. Com isso surgem as questões de posse da terra e dos produtos, posse dos animais e posse da mulher e dos filhos, consequentemente as questões de herança. Nasce o Direito e com ele vai se desenvolvendo a sistemática da propriedade. O amor simples e puro dos clãs, das tribos e das hordas vai sendo enleado em complicações de deveres e direitos. A magia dos pajés e xanãs transforma-se em esboços imprecisos de religiões, em que os ritos sociais se convertem em rituais complicados e carregados de simbologia confusa. A família é instituída e as linhagens familiais se definem ao longo dos interesses hereditários. A civilização é a sofisticação da vida. A riqueza acumulada estabelece as divisões de classes, de estamentos e castas. O fluxo livre do amor transforma-se progressivamente num rio crivado de barragens. As posses e as riquezas criam dificuldades nas relações humanas. Os que não possuem terras disputam pedaços das terras dos outros. As lutas pela proximidade dos rios, riachos e fontes dão início às escaramuças e matanças das guerras futuras. O sentimento de posse leva o homem a transformar a mulher em propriedade. O sacerdócio se organiza e é forçado a entrar no mercado das trocas. As seitas entram em disputa e cada qual necessita de recursos e posses para manter os quadros sacerdotais à altura da demanda de ritos e sacramentos. Os deuses primitivos seguem o exemplo dos homens e geram novos deuses nas linhagens familiais da mitologia que sucedeu ao totemismo simplório. O tempo vai deixando na distância o respeito ingênuo pelo amor espontâneo. As uniões naturais se artificializam em complicações rituais determinadas por ordenanças sacerdotais. Os poderes dos sacerdotes crescem na proporção da incidência de mortes na comunidade, dos surtos epidêmicos que os curandeiros não podem sustar. As vantagens do casamento entre famílias ricas e pobres exasperam os ricos que estabelecem regras cada vez mais rígidas para a defesa das filhas. A superioridade física do homem, aumentada pelas posses e a gerência dos negócios, reduz a mulher à escravidão progressiva. Ela se transforma em tabu, criatura intocável e encarnação da honra do pai e da família. As jovens acrescentam ao tabu o seu valor de troca, viram mercadoria. Dali por diante, os seus sonhos de amor são loucuras de moças inexperientes e ignorantes, que os pais reprimem em favor delas mesmas, do futuro que as espera.
3 – Civilizações Orientais

As grandes Civilizações Orientais atingem proporções gigantescas, poder e riqueza nunca vistos. Criam-se poderosos exércitos para a defesa do Estado contra as ambições de outros Estados. A simples disputa de terras junto às águas transforma-se nas guerras de conquista de territórios inteiros. O amor se afoga no mar de convenções e interesses em contradição permanente. As linhagens familiais resguardam-se nos títulos de nobreza. E quanto mais nobre a linhagem, tanto mais escravizadas as jovens casadouras, embaladas como os produtos da indústria futura, em complicadas vestimentas de esplendor celeste, mas recheadas de angústia e desespero. Mesmo nos pequenos reinos da Pérsia, da Grécia, da Itália, as lutas entre famílias nobres levam a guerras devastadoras. Helena raptada, causa, sem querer, a destruição total de Tróia. O amor se transformou em cobiça e o objeto de todas as cobiças é precisamente o que era o objeto do amor.
4 – A Roma Camponesa


Transformada em gigantesca estrutura imperial, conquista o mundo, submete nações, arrasa impérios nascentes ou prósperos que podem ameaçá-la mais tarde. Cleópatra confia em sua beleza e seus encantos para salvar o Egito. É a mais atrevida reação da mulher à fúria escravocrata dos homens, mas acaba vencida e suicida-se. Por mais bela e valiosa que seja a mulher, não passa de uma frágil criatura humana lutando contra os poderes humanos e sagrados que os sacerdotes construíram com os elementos ingênuos da magia das selvas. Em Atenas o culto da beleza parece dar à mulher uma chance de liberdade. A teoria do amor, em Platão, liga-se à libertação da alma. O amor dos belos corpos conduz à salvação. Mas o amor grego chegou à exaustão e os belos corpos não são apenas femininos. O antigo rito da virilidade, ainda dominante em Esparta, levou os homens a descobrirem a beleza dos efebos. A reação feminina surge em Lesbos, a ilha da poesia e do amor, em que as mulheres se amam umas às outras. O aviltamento do amor chega ao auge. Persas e macedônios, famintos de riqueza e poder, conquistam a divina Hélade e provam definitivamente que Eros perdeu a sua última cartada na terra devastada pela loucura da ambição.
5 – O Feudalismo


Coube aos povos bárbaros da Germânia liquidar Roma contagiada pela deturpação do amor. O Cristianismo derrotado na Palestina conseguira infiltrar-se em Roma através das camadas inferiores da população. Os bárbaros conquistaram o mundo e havia uma esperança de libertação da mulher. Os bárbaros cultuavam a beleza feminina e a bravura masculina. Mas o sacerdócio cristão já dominava nas terras imperiais dos Césares. O Império renascia no modelo das Civilizações teocráticas do Oriente. O culto da mulher era o culto da Virgem. O amor que o Cristo pregara e exemplificara, o respeito do Cristo pela mulher e o perdão que estendera aos seus pecados, em face dos pecados monstruosos da ganância dos homens, nada valeram ante o poder do sacerdócio como ante a ignorância dos bárbaros. Retalhado o Império na fragmentação dos feudos e amaldiçoada a libertinagem imperial, a mulher foi novamente encerrada nos castelos como símbolo de honra. A virgindade e a fidelidade tornaram-se tabus invioláveis. Como as vestais, que deviam ser enterradas vivas se violassem os votos de castidade, as castelãs seriam emparedadas ou sacrificadas a espada em caso de perjúrio. Submetidas à tortura dos cintos de castidade, com fechadura e chave, enquanto os barões lutavam em terras distantes, as castelãs feudais, pobres flores de estufas que os menestréis cantavam em seus sonhos ao luar, elas suspiram em vão pelo amor dos cavaleiros nos jogos florais. O amor se transformara em carrasco impiedoso, que lhes premia a carne delicada entre ferros. O pecado da beleza e a ameaça do desejo as reduzia a condenadas sem crime.
6 – Era Cósmica

O Renascimento, o mundo moderno e o mundo contemporâneo proclamaram, após milênios de escravidão e ignomínia, os direitos da mulher. Ela se livrou das torturas antigas, mas os clérigos cristãos continuaram a cercá-la e a acuá-la. O peso do celibato forçado explodiu os recalques milenares, não obstante as licenças eventuais de que puderam sempre gozar. Mas a Era Cósmica também explode nos limites da gravidade terrena. Novas dimensões do pensamento se abrem no Infinito. Devastações pornográficas abalam a Terra, envenenada pela furiosa ambição dos homens. Quem sabe se virá do Espaço Sideral, no bojo dos discos-voadores, a lição e o exemplo de Humanidade que o Cristo deixou no planeta e os homens enterraram sobre montões de sofismas e os clérigos se recusaram a compreender?
 A vitória do Amor será a vitória do homem e da mulher, de toda a espécie humana aviltada por si mesma. Será também a vitória do Planeta, poluído até as entranhas pela ambição desmedida. Onde estão os filósofos desta hora amarga, que não cogitam do problema do Amor? Onde estão os filhos do homem que são também e, acima de tudo, filhos da mulher? Os que pregam a defesa da família, não perceberam ainda que a família se avilta e se dissolve com a afronta à dignidade da mulher?
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colaboração de Célia Regina