quinta-feira, 6 de setembro de 2012

UM MINUTO DE ATENÇÃO!

 

          "Naquela tade, como de rotina, o Zé, vendedor de bilhetes da sorte, fazia sua visita àquela empresa.
          Homem franzino, despenteado e de vestes rotas, dentes malcuidados, barba rala, quase um mendigo, de tez morena e sorriso largo.
          Logo à porta, recebia a zombaria do porteiro, à qual retribuía com um garcejo. Mais adiante, era a voz dos rapazes, tudo igual a todo dia: Olá Zé da cana! Olá Zé da sorte! Olá Zé... Eram sempre chacotas de ambas as partes para rechear o momento com agrados passageiros, e o Zé fazia o papel de bobo da corte para obter o mínimo de aceitação e poder chegar à sua meta.
          Sua grande meta era Rosália, que se lhe comprava um bilhete e tinha o gesto incomum de permitir-lhe 'filar' um cafezinho no copo  branco e descartável. Nada havia de mais agradável ao Zé do que aquela experiência.
          - Obrigado, dona Rosália, amanhã eu volto, viu?
          - Por nada, Sr. José, estarei esperando.
          O que era o Zé? Todos sabiam se tratar de ambulante, mas quem era o Zé? Nunca ninguém indagou, nem sequer desejou fazê-lo. Quem era esse homem?
          Certa tarde, ele chega e tem uma tremenda decepção:
          - Cadê dona Rosália?
          Alguém sem nenhum interesse humano, responde-lhe que ela estará 15 dias afastada por problemas de saúde. E o Zé sai sorrindo e cantarolando, mas somente até o portão, porque tão logo ganhou a rua, ele começa a viver uma das experiências mais infelizes de toda sua existência.
          Durante 15 dias, o homem não mais apareceu, e ninguém o viu por lugar algum. Finda a quinzena, ele surge mais maltrapilho, odor fétido e sem o sorriso trivial:
          - Cadê dona Rosália?
          E com muita frieza ele recebe a resposta:
          - Dona Rosália morreu.
          - O que? Não pode ser verdade!
          - Sim, uma semana atraz ela faleceu.
          - Para de brincadeira! É brincadeira, não é?
          - Não Zé, não é; tanto que ela pediu para lhe entregar isso, quando se encontrava no leito do hospital.
          - Para mim?
          - Sim, é para você.
          Finda a conversa, o homem sai desconcertado e chocado, ao mesmo tempo em que a curiosidade o tomava relativamente quanto ao envelope deixado por Rosália.
          Ele o abre e depara-se com dezenas de bilhetes de loteria, e junto a isso um recado de Rosália, que dizia:
          - Meu bom Sr. José, a morte está próxima para mim, e não posso partir sem deixar de me lembrar de todas as pessoa importantes na minha vida. O senhor é uma delas. Devolvo-lhe todos os bilhetes que adquiri em sua mão e que nunca foram conferidos, pois apenas os comprava por saber o quanto eram significativos para sua dignidade. Desculpe-me por nunca ter lhe dado mais que isso, mas nunca desista de resgatar sua honra e lute pela vida. Rosália.
           O Zé saiu atormentado e com sentimentos indefinidos. Foi-lhe um dia difícil.
           José Pereira Altamirando, casado, pai de seis filhos pequerruchos, dono de pequeno pedaço de terra, saiu de seu estado nordestino quinze anos atrás e veio tentar a vida na capital com emprego arranjado, mas logo foi despedido. Tentou novas profissões humildes, o dinheiro acabou, não tinha onde morar, passou a viver nas ruas sem condições de regressar ao lar. Fez amizade com pessoas em condições semelhantes e a ilusão de conquistar algo o manteve, dia após dia, a tentar alguma coisa. Todavia, enquanto isso ocorria, a saudade dos filhos o machucava. Não sabia escrever corretamente, os dentes caíam, a saúde periclitava, o tempo passava, a dignidade se perdia...
          Quem é esse homem? Vamos saber?
          Sem se realizar física, afetiva, social e espiritualmente, amoldou-se à vida social dos indignos. Bebia para esquecer, fumava para aliviar, fazia-se de bobo da corte para viver e se tornou o Zé das loterias. Seu mundo íntimo em destroços.
          A rejeição social lhe impunha  a condição de um mendigo de rua, e recebia a amostra da insensibilidade humana. Policiais impiedosos lhe faziam zombaria ou o espancavam com seu grupo, acusando-os de roubo urbano.
          Então passou a mendigar, e a venda dos bilhetes era sua subsistência: um prato de almoço, sua cachaça, um banho semanal...
          Com o tempo, os sonhos se esvaíram e cederam lugar à realidade que ele teve de aceitar. A saudade transformou-se em sentimento enregelado, e a revolta converteu-se em atitudes de gracejos e trejeitos, a fim de que obtivesse a mínima aceitação de seu meio, em troca de ironias e sorrisos de escárnio.
          Esse é o verdaeiro Zé que ninguém conhecia, mas que Rosália sentia. Mulher piedosa e sensível, não enxergava nele o vendedor, todavia, um ser humano que, certamente, encontrava-se naquela condição não por escolha pessoal,  e sabia que pessoas assim têm profundas carências de respeito, afeto e atenção.
          Ela sabia que o Zé ia ali por causa dela, e tão somente por isso, mas ninguém se dava conta.
          Ninguém sabia, entretanto, que, assim como Rosália colecionou os bilhetes, o Zé colecionava os copos descartáveis de cada um dos dias em que esteve na repartição; e, noite após noite, sentindo uma saudade incomensurável, nessa altura do destrambelho emocional, nem sequer conseguindo identificar tratar-se desse sentimento, tomava a coleção dos copinhos e comçava a lembrar a imagem de Rosália, dos filhos, da sua terra, e a dor ia apertando a ponto de, sem ter noções exatas do que lhe ocorreria no mundo interior, não suportar e apelar para o seu anestésico alcoólico, para passar a dor, e então saía em atitudes teartrais e bizarras, tudo para fugir de si mesmo.
         Esse era o Zé, um homem que teve seu nome encurtado, sua dignidade afogada, sua identidade integral consumida pela força das pressões e agressões da sociedade, que apenas carimba-lhe de vendedor de bilhetes."

          Os ifortúnios ocultos estão ao nosso lado todos os dias, em todos os lugares.
          Saibamos ser um pouco da Rosália em todos os dias e em todos os lugares. As pessoas não estão querendo muito e nem precisam de muito; basta, quase sempre , um minuto de atenção. E que esse minuto seja usado para uma das ações mais terapêuticas do mundo moderno: levar o outro a sentir que pode ser útil e fazer algo de bom, mesmo na situação em que se encontra.

(trecho extraído do livro "Diferenças não são Defeitos" de Wanderley de Oliveira/ Ermance Dufaux -cap 22)



Colaboração de Célia Regina    

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